sábado, 27 de outubro de 2012

Terceirizando Afetos


“Me ensine a rezar, não lembro mais”. Para a pedagoga aposentada, Vera Aziz, 61 anos, esse foi o momento mais doloroso. Quando ela percebeu a evolução do quadro de um possível Mal de Alzheimer em seu pai, Manoel Coelho, 88 anos. Tentar fazer uma oração e não conseguir. Esquecer como se reza, é perder-se dentro de si mesmo, afirma Vera. “Aproximei-me e rezei em voz alta o Pai Nosso. Ele foi repetindo a oração, assim como fazemos com as crianças, como um dia, certamente, fez comigo”.

Vera diz que, em muitos momentos, envelhecer implica em comportamentos que são encarados como teimosia e birra. Desde aquele dia, ela vem sentindo cada vez mais a necessidade de desabafar sobre a dor que tem consumido seu tempo, forças e alegria. “Moramos juntos e o cotidiano é vivido plenamente, com as demandas exigidas pelo uso diário de medicações, cuidados com a higiene e alimentação controlada. Não sei bem o que é pior: ausentar-se da vida ou viver ausente”, diz. Hoje, apenas um radinho de pilha, mal sintonizado, é capaz de despertar o interesse de Sr. Manoel, como se esse fosse o último elo a conectá-lo ao presente. “Às vezes, ele até que tenta juntar fragmentos da memória nos delírios”. Para ela, foi difícil entender as alterações no comportamento do pai. “E como brigamos nesse período! A fragmentação da memória, a ausência de atenção, a demência, o déficit da cognição, transformaram meu pai, antes tão esperto, forte, corajoso, em uma pessoa que se ausenta cada dia mais do convívio familiar, que perde cada dia mais a autonomia e que, recentemente, começou também a perder as palavras...”

DESGASTE

O Mal de Alzheimer caracteriza-se pela perda gradativa da capacidade em manter memórias recentes e adquirir novos conhecimentos. Esta enfermidade provoca ainda distúrbios de comportamento, que vão da apatia à agressividade. “O desgaste físico e emocional em que vive o parente de um portador de Alzheimer é muito grande”, observa Beila Carvalho, vice-presidente da Associação Bahiana de Parkinson e Alzheimer - ABAPAZ. E é justamente nesse momento que costuma entrar na vida da família do portador de Alzheimer a figura do cuidador.

Para a Cuidadora Elizete Pinheiro Gomes, 33 anos, é necessário amor, paciência e, claro, gostar muito do que faz, por que o idoso perde suas referências e precisa de atenção, carinho e cuidado, e não há como evitar o apego. “O paciente passa a fazer parte do nosso mundo afetivo”, diz a Cuidadora.



Elizete, conta que entrou na profissão por acaso. Estava desempregada e surgiu a oportunidade de tirar as férias de uma pessoa que cuidava de uma idosa de 103 anos de idade. Dali para frente, a cuidadora tomou gosto e descobriu sua real vocação. Iniciou um curso em uma escola Municipal no bairro da Ribeira, mas não pode concluir por que o curso foi fechado. Trabalhou como voluntária no Lar Monte Alverne, em Brotas, uma casa de idosos, só de mulheres e mantida pelos padres franciscanos. Segundo ela, ali aprendeu muita coisa. Hoje trabalha cuidando de Sr. Anselmo de Andrade Campello, de 84 anos, e se diz realizada com o trabalho que faz.
O Cuidador se transforma então em uma espécie de “ponte” afetiva e material entre o idoso, a família e o médico, conforme nos conta Isa Valois, filha de Anselmo Campello, 84 anos. “Seria impossível ter uma vida normal sem a presença de uma cuidadora de confiança, e Elizete é a extensão de nosso coração, de nossos braços, de nossos olhos e de nosso amor”, resume.

LONGEVIDADE

Como a expectativa de vida tem aumentado, segundo dados do IBGE, relatos como esses, e muitos outros, têm sido mais frequentes já que com o maior desenvolvimento do Brasil, a medicina, os cuidados, as informações sobre alimentação, saúde, saneamento têm oferecido condições para a longevidade. Dados do Instituto, afirmam que o crescimento da população com idade acima de 70 anos, no intervalo de dez anos, entre 2000 e 2010, foi de mais de dois milhões e oitocentos mil idosos em todo o Brasil. E os especialistas afirmam que essa população necessita manter hábitos saudáveis de alimentação, exercícios físicos, hábitos intelectuais e sociais, como uma maneira de proteção ou retardamento das doenças neurodegenerativas.

Em Salvador existe uma instituição sem fins lucrativos, a ABAPAZ, que abraçou a missão de apoiar, orientar e informar a sociedade sobre essas doenças. A instituição não só conscientiza para o envelhecimento saudável, como para a prevenção da saúde física e mental, além de capacitar os cuidadores.

Isa Valois afirma que esta é uma doença cruel, mas é também um instrumento de lição de vida para todos que passam por ela. Afirma ser uma pena que se saiba tão pouco a respeito do mal de Alzheimer, e que por isso nunca se está preparado para enfrentá-la no seu mais discreto sintoma. “A terceirização do afeto não é um ato de ausência familiar. É um ato de amor, de compreensão, de assumir as limitações gerais que envolvem ter um idoso com necessidades especiais. É acima de tudo confiar que o Cuidador seja a ponte entre nós, nosso idoso, e médicos”, declara Isa.

Já para Vera Aziz, o desabafo vai além das necessidades diárias que implicam as doenças. Saber lidar com o silêncio, a ausência requer uma sensibilidade muito especial, e diz: “Quando esse momento chegar à minha vida, quando as palavras não mais se manifestarem, espero merecer a paciência de alguém, que traduza meus desejos, identifique minhas necessidades e me empreste a voz, alguém a quem eu também possa pedir que me ensine a rezar”.

2 comentários:

  1. Que texto comovente! Pensar que aqueles que nos deram vida, possam vir a nos esquecer, é algo tão triste como impensável. Que o Universo proteja todos os cuidadores que doam suas vidas para nos ajudar a viver a nossa. Parabéns, Del!

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  2. Um texto sensível e comovente. Que o Universo proteja todos os cuidadores que doam suas vidas para nos ajudar a viver as nossas. Parabéns pelo belo texto,Del!

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